Há muito não escrevo por aqui… Falta de tempo apenas! Escrever é uma
das coisas de que gosto, então é difícil dividir e elencar prioridades. Mas vamos
lá… Um assunto que está me atraindo é a história de como humanos
descobriram a fermentação e qual o impacto disso para a nossa vida. O texto a
seguir é um recorte sobre essa fantástica história e a sua relação com a ciência.
Para saber mais leia os textos que eu vou deixar, na maioria estão em inglês.
Mas vale a pena a leitura e o tempo investido.
Não sei ao certo em que momento essa história começa. Tudo bem,
parece haver um consenso aqui: ninguém sabe exatamente. Contudo, há
evidências mostrando a antiguidade dela. Essas evidências nascem de estudos
antropológicos de etnias e culturas tradicionais, estudos arqueológicos de
civilizações antigas e estudos genéticos de organismos que fazem esse
processo de fermentação.
Antes de fazer qualquer descrição desses estudos, vamos especificar o
que é fermentação. A fermentação é uma reação química que ocorre nos
microorganismos como bactérias e fungos. Há vários tipos de fermentação e elas
são classificadas segundo as substâncias produzidas. Fermentações lácticas
levam a formação, principalmente, de lactatos. Acéticas, de ácido acético (você
conhece por vinagre, indesejável em vinhos). E alcoólicas formam álcool (etanol
é um deles) e gás carbônico. Mas por que bactérias e fungos produzem essas
moléculas?
Bem da verdade, essas moléculas dão certa vantagem uma vez que
podem ser tóxicas para muitos outros organismos, sendo assim fungos e
bactérias que produzem ácidos e álcoois podem acabar com a concorrência,
diminuindo a competição por espaço e alimento, recursos limitados na natureza.
Mas a principal função dos processos fermentativos é a produção de energia
para sustentar a vida desses micro seres.
Para essa produção de energia, microorganismos absorvem carboidratos
(entre eles açúcares) do ambiente. Uma vez dentro de suas células, esses
açúcares entram em uma cadeia de reações químicas que levam ao
desmantelamento e transformação deles. Uma das substâncias resultantes é o
piruvato. É ele que levará a produção de energia no interior das células dos
microorganismos.
Resumindo: a fermentação é como alguns microorganismos produzem
energia para manter-se vivos e/ou se multiplicando. Mas o que importa para os
humanos é a consequência da ação desses pequenos seres. Enquanto eles
quebram açucares complexos, eles produzem substâncias de interesse para
nós. Ácidos orgânicos, álcool e gás carbônicos são alguns de nossos interesses
moleculares. Algumas dessas moléculas são nutrientes, outras, combustível ou
embriagam, mas todas podem ser utilizadas por nós.
E aqui está uma das perguntas do meu interesse: Desde quando seres
humanos desfrutam dos benefícios da fermentação? Quando analisamos
culturas tradicionais do continente africano, americano ou asiático. Vimos que há
produção de alimentos fermentados há muitas gerações, sendo incorporados,
assim, no modo de vida. Às vezes até o tecido social pode ser preenchido por
certa dose de fermentação. Em países do noroeste africano, por exemplo, há
etnias que utilizam um fermentado alcoólico de sorgo para reunir a família e
vizinhos, para compartilhar histórias e alguns momentos descontraídos. Quem
já foi a um barzinho com os amigos sabe do que eu estou falando.
Registros arqueológicos mostram que a fermentação já era conhecida há
7000 anos. Vasos de cerâmicas chineses denunciam a produção de vinho na
aurora da humanidade, junto com os primeiros registros de agricultura no velho
continente. Na região da Mesopotâmia, berço das mais antigas civilizações
ocidentais temos os primeiros registros escritos de receitas de cerveja com
quantidade e ingredientes bem definidos. A data desses registros? Cinco mil e
oitocentos anos atrás, os sumérios já conheciam tão bem a fermentação
alcoólica que registravam as suas receitas. Com certeza, naquela época a
fabricação de cerveja era tradição familiar passada de geração em geração.
Incrível, não?
Mas saber exatamente em que ponto da Antiguidade fomos capazes de
escolher os nossos aliados fermentadores é difícil. E saber quando ocorreu a
domesticação e escolha dos microrganismos certos para cada alimento talvez
possa nos auxiliar em saber quando, exatamente, descobrimos a fermentação.
Aonde a antropologia e a arqueologia falham, a biologia tem sucesso. Mas antes
foi necessário descobrir algo que hoje é simples: a fermentação é um processo
biológico. E se é biológico, é processo feito por seres vivos. E isso muda tudo,
acreditem.
Eu já disse que a fermentação é feita por microrganismos. O que eu
escondi foi que esse conhecimento só foi construído no séc. XIX. Isso quer dizer
que antes disso, todo produtor de vinho, pão, cerveja ou qualquer outro alimento
fermentado achava que isso era culpa dos deuses, do clima ou de qualquer outro
fator ambiental. Se você voltasse no tempo, para o séc. XVII e dissesse que o
álcool presente no vinho era feito por seres invisíveis feitos por estruturas
chamadas células, provavelmente você seria internado em um manicômio.
Por sorte tivemos muitos avanços desde então, dois séculos de avanços,
para ser um pouco mais exato. Contamos com inúmeros cientistas profissionais
e amadores trabalhando e para hoje sabermos que seres vivos são compostos
de células e alguns compostos por uma célula apenas e que, às vezes, podem
produzir energia quebrando açúcares e os transformando em outras
substâncias. A história exata de como essa mudança ocorreu, deixo para outro
texto. O importante a saber aqui é que se a fermentação é feita por seres vivos,
há o envolvimento de genes e se há genes, há DNA.
O DNA é a molécula que guarda as instruções para a construção das
células de um ser vivo específico. Se você, por acaso, possui 1,74 m de altura,
olhos castanhos, azuis ou verdes, saiba que, em parte, essas características são
determinadas pelos seus genes (a unidade de informação guardada no DNA).
Como o DNA funciona e a história de sua descoberta pode ser tema de outro
texto. Mas, então, indivíduos da mesma espécie partilham genes muito
semelhantes. Indivíduos de espécies diferentes, possuem menos semelhanças
genéticas.
Sendo assim, posso diferenciar duas espécies segundo o conteúdo de
seu DNA. Além disso, quanto maior a diferença genética entre elas, mas
distantes elas são. Ou seja, conseguimos saber o quanto duas espécies são
distantes olhando para os seus genes. Com algumas suposições sobre quanto
tempo o DNA leva para se modificar, conseguimos achar há quanto tempo duas
espécies se diversificaram. E assim fizemos para as espécies de fungos
fermentadores.
Analisando um conjunto de 5 genes de 81 fungos fermentadores, um
grupo de cientistas estadunidenses conseguiram estimar a diversificação das
linhagens de fermentadores de vinho e de saquê. Esse estudo já é antigo, de
2005, mas possui conclusões interessantes, vamos a elas. Algumas das
linhagens analisadas são de fermentadores que ocorrem naturalmente, ou seja,
em ambiente natural. Quando houve a comparação dos genes entre linhagens
selvagens e linhagens domesticadas, vemos que as linhagens selvagens
possuem mais variações em seus genes do que as linhagens domesticadas. Isso
mostra como seres humanos atuaram na seleção de fermentadores mais
interessantes para os seus anseios (gosto, cor ou teor alcoólico) levando esses
fungos a ficarem cada vez mais parecidos.
Outra conclusão interessante é de que a diversificação entre as linhagens
parece ter ocorrido a aproximadamente 12 mil anos. Isso quer dizer que, mesmo
sem saber que as fermentações eram resultado da ação de microrganismos, a
humanidade foi capaz de selecionar os fermentadores mais interessantes e esse
processo teria se iniciado a 12 mil anos. Essa evidência biológica da origem da
produção de alimentos fermentados se torna forte por que é suportada pelos
achados arqueológicos que eu já citei.
Acima de tudo, essa história mostra que a associação da humanidade
com outras espécies, por meio da domesticação, está intimamente associada
com o nosso desenvolvimento como civilização. A fermentação, tal qual, se
apresenta se assemelha muito com a descoberta do fogo, sendo fonte de mais
calorias, nutrientes e energia. Ou seja, uma nova fonte energética. Que outras
formas de obtenção de nutrientes nos aguardam daqui para frente? Daqui 12 mil
anos, com certeza, haverá cientistas desvendando os segredos da nossa
sociedade atual.
Para saber mais:
Randi Haaland (2007). Porridge and Pot, Bread and Oven: Food Ways and
Symbolism in Africa and the Near East from the Neolithic to the Present.
Peter Damerow (2012). Sumerian Beer: The Origins of Brewing Technology in
Ancient Mesopotamia.
Justin C. Fay, Joseph A. Benevides (2005). Evidence for Domesticated and
Wild Populations of Saccharomyces cerevisiae.
A história da fermentação
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