Existem coisas simples no nosso cotidiano que são consideradas tão
naturais que podem passar desapercebidas e sem que nós nos perguntemos:
“Por que isso é assim?”. Por exemplo, todos os dias, a maior parte de nós se
despede do sono ao nascer do sol, com a disposição adquirida depois de dormir,
trabalhamos, estudamos ou desempenhamos qualquer outra função que “nos dá
na telha”. Mas conforme vai escurecendo, as coisas vão ficando cada vez mais
vagarosas, o cansaço bate e o sono retorna com o ápice da escuridão do nosso
quarto. E aí eu pergunto: Por que isso é assim? Por que somos mais ativos com
a luz do dia e ficamos mais sonolentos conforme o céu escurece? E mais
importante: por que estou escrevendo sobre isso no período que estamos
enfrentando a maior pandemia do último século? Leia tudo e você entenderá.
Essa nossa disposição a ficar sonolentos na escuridão não é por acaso.
Há um hormônio produzido pelo nosso organismo que controla o nosso ciclo
circadiano (esse eterno dorme, acorda, trabalha, dorme, acorda…) o nome dele:
melatonina. Tal hormônio está presente em outros animais, em plantas e até em
bactérias. Em humanos a glândula pineal (estrutura ligada ao cérebro) é a
responsável pela produção da maior parte de nossa melatonina. E a luz do dia
tem um papel importante nisso: a produção e liberação desse hormônio são
bloqueadas pela luz que entra pelos seus olhos. Dessa forma, a liberação desse
interruptor químico ocorre em horários e ambientes em que o Sol já não reina.
Quando a melatonina chega aos seus alvos, vários são os efeitos:
diminuição da temperatura corporal, diminuição dos níveis de adrenalina e
cortisol (hormônios ligados a nossa disposição diária) e diminuição a dos
batimentos cardíacos. Com isso o nosso corpo vai estar mais disposto a relaxar
e a encontrar o sono. Toda essa orquestração dos ritmos devido a melatonina
mantém o próprio funcionamento do organismo.
A capacidade da melatonina de controlar os ritmos corporais está
associada o seu efeito sobre os genes e produção de proteínas das nossas
células. E é aqui que o cotidiano encontra o extraordinário. Essa capacidade de
interruptor de genes parece estar ligada a um possível bloqueio da invasão das
células pulmonares pelo vírus da Covid-19. Pelo menos é o que está sendo
considerado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). E o que
esse grupo fez para chegar a essa conclusão? Analisaram se o efeito interruptor
da melatonina pode atingir genes presentes nas células pulmonares que tornam
a invasão e sobrevivência do vírus possível. E motivo é simples: se a melatonina
puder desligar os genes celulares que tornam possível a infecção, o vírus não
se instala e possivelmente o organismo se mantém saudável.
O trabalho da equipe liderada pela pesquisadora Regina Markus e que
contou com o apoio de pesquisadores do hospital do Câncer, iniciou produzindo
um índice com base na ativação dos genes de produção e destruição da
melatonina que fosse capaz de predizer os níveis desse hormônio no organismo
estudado. Esse índice foi utilizado para classificar 288 amostras de pulmões
saudáveis em três categorias: alto, médio e baixo. Sendo que amostras com
índice alto teriam alta produção de melatonina.
Após o trabalho de classificação a equipe focou esforços no levantamento
da literatura a procura de genes das nossas células que estavam relacionados,
por incrível que pareça, com o “bem-estar” do vírus. Acharam 455 genes que
controlam a entrada do vírus na célula, o transporte e reprodução do vírus e
produção de energia dentro das células pulmonares. O próximo passo foi
responder as perguntas: nas nossas 288 amostras esses genes estão “ligados”
ou “desligados”? E qual a relação desse estado com o índice de melatonina.
O resultado foi animador: cerca de 25% dos genes relacionados a
manutenção do vírus não estão sendo expressos (desligados) nas amostras com
altos índices de melatonina. Ou seja, quando o pulmão está produzindo esse
hormônio, o órgão torna-se resistente a possíveis infecções por SARS-Cov2.
Mas esse não é um resultado definitivo, há outras perguntas a serem
respondidas. A principal delas: esse apagão nos genes se mantém mesmo
quando o organismo já está infectado?
De qualquer modo, esse estudo – financiado por dinheiro público e feito
em instituições públicas – abre caminho para o melhor entendimento da
regulação da infecção por coronavírus e ainda por outros vírus pulmonares. Além
disso, indica uma perspectiva para possíveis medidas de prevenção contra a
Covid-19.
Para quem sabe inglês e deseja ver como é um artigo científico, eis o
original:
Fernandes, P.A., Kinker, G.S., Navarro, B.V., Jardim, V.C., Ribeiro-Paz, E.D.,
Córdoba- Moreno, M.O., Santos-Silva, D., Muxel, S.M., Fujita, A., Moraes, C.,
Nakaya, H.I., Buckeridge, M.S. and Markus, R.P. (2021). Melatonin-Index as a
biomarker for predicting the distribution of presymptomatic and asymptomatic
SARS-CoV-2 carriers. Melatonin Research: 4, 1 (Jan. 2021), 189-205.
DOI:https://doi.org/https://doi.org/10.32794/mr11250090.
Para quem quer ver mais de perto os resultados em português:
https://agencia.fapesp.br/melatonina-produzida-no-pulmao-impede-infeccaopelo-novo-coronavirus/34959/