Como falar de Covid-19 já me saturou, vou mudar de assunto. Não é que não haja mais
nada de novo. Longe disso: temos o surgimento de uma segunda onda de contágio o que levanta a possibilidade de reinfecção, há uma lista cada vez maior de sintomas diversos, há vacinas sendo fabricadas e prometidas para o fim do ano e a possíveis transmissibilidade pelo ar. Porém, tenho a impressão de que só se fala disso e por isso não acrescento nada. Então, só volto a falar sobre isso se vocês cobrarem. Por outro lado, há notícias que passam batido e são interessantes da mesma forma. Algumas nos surpreendem pelo conteúdo e nos faz repensar o nosso papel de humano aqui na Terra.
Surpreendente também é o misto de arrogância, ganância e estupidez que acompanha
alguns comportamentos humanos. Um jovem, estudante de medicina veterinária, deu entrada em um hospital em Brasília “vítima” da mordida de uma Naja sp. que era criada por ele. Ter um animal silvestre, como animal de estimação, por si só, me parece absurdo. Ter uma serpente é sem noção. Mas ter uma serpente peçonhenta de estimação é estupidez absurda. Adiciona-se a isso detalhes que tornam esse “estudante” algo a ser investigado seriamente.
Najas são serpentes, nativas da África e da Ásia, com uma potente mistura de moléculas
neurotóxicas (bloqueadoras de sinais nervosos) e miotóxicas (destruidoras de músculo) que podem paralisar a vítima em poucas horas (se quiserem detalhes posso fazer um texto sobre).
Para se ter uma ideia do que estou falando, acidentes causados por corais- verdadeiras
(“primas” brasileiras das najas) são os únicos tratados como graves mesmo se o paciente chegue ao hospital sem muitos sintomas. Resultado no caso do “estudante”: coma! Por sorte! Perguntas a serem feitas nesses casos, ao meu ver, são: O que ele estava fazendo com esse bicho em sua casa? Como ele conseguiu esse exemplar? Será que ele faz parte de uma de rede de tráfico de animais? Essa última, quase retórica. Explico
Coincidentemente, horas depois da entrada da “vítima” no hospital, um amigo seu
abandonou 16 serpentes – nativas e exóticas (de outros países) – em um haras. Pelas
reportagens que eu vi, pareciam ter alguns exemplares de Corallus caninus, Epicrates sp. e
pítons. Além dessas 16, outras duas foram entregues por outro homem. Trata-se de uma víbora verde asiática da espécie Trimesurus stejnegeri e uma víbora brasileira bem conhecida no sul do Estado de São Paulo: a Bothrops jararacussu. Além foi encontrada na casa do “estudante” Pedro fragmentos de pele de surucucu (Lachesis muta sp.). Trata-se da maior serpente peçonhenta das Américas, com até 4,5 metros que habita a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica e corre risco de extinção. Ambas extremamente peçonhentas ocasionando acidentes que podem levar a hemorragias, necrose de partes da vítima, insuficiência renal aguda e claro… morte. Nem preciso dizer que é má ideia possuir um animal de estimação desses.
Todas as serpentes pareciam estar em caixas organizadoras pequenas e ideais para
transporte, mas não como viveiro. Tornando a vida de um animal acondicionado assim sofrível e configurando, dessa forma, maus tratos animais. Quem estava receberia tais serpentes? Como Pedro as recebeu e de quem? São perguntas que o “estudante” terá que responder. Por ora, Pedro pagou uma multa de 2 mil reais pelo IBAMA. Pessoalmente, me pergunto se o tratamento seria igual se a “vítima” não fosse “estudante de medicina veterinária” ou ainda se tivesse outra pigmentação cutânea?
Embora os temas discriminação ou tráfico de animais sejam importantíssimos (se
quiserem podemos fazer outro texto para essa discussão, ou quem sabe um vídeo?). Uma
pergunta que me motivou a fazer a pós-graduação em farmacologia foi: para que servem as peçonhas além de causar destruição e mortes? Fiz mestrado e doutorado trabalhando com toxinas encontradas em serpentes e essa resposta me parece ainda mais complexa do que as próprias peçonhas. Acho que devemos nos perguntar serve para quem? Se a resposta for para os seus portadores a resposta é que essas misturas de moléculas ricas (ou não) em carbono possibilitam aos seus portadores afugentar intrometidos, se defender de possíveis agressores e capturar presas.
Para isso, as peçonhas contêm inúmeras substâncias que vão interferir no funcionamento natural dos organismos das vítimas. Tal interferência tem um objetivo, incapacitar e imobilizar a presa/ ou agressor para que o animal peçonhento possa se alimentar/
ou fugir. Mas que substâncias são essas? Cada animal peçonhento guarda nas suas glândulas de veneno um arsenal químico diferente. Mas como o objetivo é a imobilização/incapacitação os alvos são sempre os mesmos: sistema nervoso e locomotor, sistema circulatório e sistema respiratório. Como esses alvos são atingidos depende de muitos fatores. Para deixar claro meu mestrado foi isolando e testando uma proteína encontrada na peçonha da jararaca. Ela tinha um alvo certo: proteínas de coagulação sanguínea. Dessa forma, ela tinha o potencial de tornar o sangue da vítima incoagulável. Há uma infinidade de moléculas e formas de interferência. E por isso é extremamente perigoso lidar com animais peçonhentos.
Agora se você pergunta qual é a função para os humanos, podemos pensar de duas
formas. Podemos pensar as peçonhas como caixas de ferramentas que são utilizadas para
entender o funcionamento do nosso organismo uma vez que cada uma das ferramentas contida interfere em um de nossos componentes internos. Além disso, podemos pensar as toxinas como possibilidades de tratamentos para uma gama de doenças. Um exemplo disso é o captopril que primeiramente foi isolada da peçonha de jararaca e hoje é um dos medicamentos mais vendidos para o tratamento de hipertensão.
Podemos concluir que embora as peçonhas e venenos animais possam ser considerados
perigosos por suas ações sobre o nosso organismo, esse mesmo motivo nos leva a utilizar-nos das toxinas como ferramentas para o entendimento, possibilitando assim o desvelamento da realidade e a inovação, cumprindo assim um papel de destaque na área da saúde.
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