sábado, 21 setembro 2024
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Serpentes a serviço da ciência

No meu último texto escrevi sobre o estranho caso de um estudante brasiliense
mordido por uma Naja kaouthia e a consecutiva apreensão de 16 serpentes. O gênero Naja
é um grupo de serpentes que habitam regiões da Ásia e da África e por isso esse animal é
exótico. Ainda não sabemos como esses animais foram parar nas mãos dessas pessoas e
para quê fim eles eram utilizados. Mas os fatos vão se encaixando e delineando uma rede
de tráfico internacional de animais e de produtos de origem animal. Em inquérito
interno, o IBAMA suspendeu um funcionário e exonerou outro por supostos
envolvimentos no caso. A funcionária trabalhava com a triagem de animais silvestre e há
suspeitas de que emitia licenças para o transporte desses animais. Além disso, o amigo da
“vítima” foi preso, temporariamente, dia 22 por atrapalhar as investigações. A “vítima”,
por outro lado, está em casa e pediu o adiamento do seu depoimento com base em um
atestado médico. Contudo, desembolsará 61 mil reais de multas por porte do animal. Seus
pais desembolsarão 8,5 mil reais. E o dono do haras (local da apreensão das 16 primeiras
serpentes) terá que pagar ao IBAMA outros 61 mil.
Segundo uma testemunha ouvida pela polícia, o jovem mordido vendia e
comprava serpentes a um ano. Adicionalmente, a polícia desconfia que o jovem e seus
amigos utilizavam algumas das serpentes para a produção, ilegal, de soro antiofídico.
Interessante pensar aqui, que uma das técnicas para a produção do soro antiveneno baseiase na injeção de pequenas doses de veneno em espécies como cavalos, dromedários e ratos. Dessa forma, ao que parece, essa rede de tráfico de serpentes não só
comercializava os animais em si, mas muito provavelmente fabricava soros para a
comercialização ilegal. E sabe-se lá mais o quê eles faziam com o restante das peçonhas.
E para quê servem esses compostos? É sobre isso que esse texto trata. Vamos lá?
Para responder a essa pergunta, devemos ser capazes de saber o que é peçonha.
Venenos, peçonhas e toxinas são termos que ouvimos toda vez que falamos de serpentes.
Embora sejam empregados quase como sinônimos, eles não são iguais. Enquanto toxinas
são substâncias (unitárias) de origem diversa que causam algum tipo de malefício para
nós e outros seres vivos, venenos e peçonhas são conjuntos de toxinas produzidos por
animais. A diferença entre veneno e peçonha reside, principalmente, na sua utilidade.
Venenos são utilizados como defesa uma vez que o animal venenoso não possui nenhum
órgão para injetar esse arsenal tóxico. Abelhas, serpentes e até anêmonas são
considerados peçonhentos já que injetam as substâncias tóxicas nas suas vítimas.

Tanto veneno quanto peçonhas contém uma variedade muito grande de toxinas.
Só para se ter uma ideia, a Naja kaouthia (aquela que mordeu o jovem brasiliense) possui
no seu repertório peçonhento aproximadamente 15 classes de toxinas diferentes. Isso tudo
para garantir que alguma dessas toxinas incapacite e/ou mate a sua vítima. Mas todas as
peçonhas são iguais? Não, nunca é igual. O tipo de toxinas contidas varia de espécie para
espécie, e às vezes até durante o desenvolvimento das serpentes. As toxinas na peçonha
da Naja kaouthia são diferentes das encontradas em jararaca (B. jararaca). E dentro da
espécie, jararacas juvenis tem uma composição enquanto adultos tem outra. Essa última
diferença deve ter a ver com a alimentação, já que jovens se alimentam mais de anfíbios,
répteis e invertebrados, enquanto adultos de satisfazem com roedores. Afinal de contas
não dá para comer sopa de garfo, ou cortar um bife com colher né?
É como se cada serpente tivesse uma caixa de ferramentas próprias para manipular
o organismo de suas vítimas afim de proporcionar a imobilização. E é assim que nós
pensamos as peçonhas e os venenos: caixa de ferramentas. Cada ferramenta com sua
utilidade a ser descoberta e testada. E como sabemos que tipo de ferramentas vamos
encontrar nas peçonhas? Para isso temos que observar e ler a infinidade de relatos de
envenenamento que se tem na literatura e prestar atenção nos sintomas apresentados. Dor, formigamento, dificuldade para abrir os olhos ou respirar (dispneia) pode indicar a
existência de toxinas neurotóxicas. Hemorragia, taquicardia e pressão baixa podem
indicar toxinas que tenham como alvo o nosso sistema circulatório. Ou seja, seguindo os
efeitos, temos uma noção do que vamos encontrar nas peçonhas e venenos. Mas para quê
é útil uma coisa que nos faz mal?
Mal e bem são relativos. Embora pareça filosofia barata, essa frase cai bem quando
pensamos em farmacologia (estudo dos medicamentos). Segundo Paracelsus, um médico
medieval “Apenas a dose faz o veneno”. Ou seja, a toxina que é prejudicial pode ser
manipulada para o nosso benefício. Dessa forma, podemos utilizar toxinas como
ferramentas no desenvolvimento de novos medicamentos e de novo entendimento.
Observem o caso da Naja kaouthia, a espécie de naja que causou o acidente com
o jovem. Dentro de sua peçonha há uma diversidade muito grande de toxinas que causam
paralisia e lesões nas fibras cardíacas. Ao se fazer o isolamento dessas toxinas (se quiser
que eu faça um vídeo ou texto sobre esse processo, faça um comentário nesse texto ou
ainda nas minhas redes sociais, eu preciso da interação de vocês) foi observado que essas
moléculas podem se ligar a superfície das fibras musculares, incapacitando-as ou ainda
as matando. Em 2005, um grupo de pesquisadores chineses utilizou uma dessas toxinas
para perfurar células leucêmicas em cultura. O que deu certo, porém um medicamento a
partir dessa toxina nunca foi feito. Afinal de contas a eficiência da molécula é só um dos
requisitos para o desenvolvimento de um medicamento. Aplicação, custo, lucro, efeitos
colaterais e dificuldade de implementação devem ser levados em conta também. Contudo,
uma infinidade de outras toxinas com o mesmo efeito foi descoberta depois de 2005.
Quem sabe o que vêm pela frente?
O medicamento mais famoso retirado da peçonha de uma serpente é o popular
Captopril. Esse medicamento foi produzido baseado numa toxina da peçonha de jararaca
que tem como função bloquear uma das enzimas responsável pela regulação da pressão
arterial, levando a dilatação dos vasos sanguíneos e diminuição da pressão arterial.
Outra possibilidade é utilizá-las para estudar alguns processos que ocorrem
normalmente no nosso corpo ou ainda detectar mal funcionamento de parte do organismo.
Nesse sentido, serpentes possuem em suas peçonhas uma classe de proteína chamada
CRISP. A função dessa proteína nas peçonhas ainda está para ser elucidada (boa parte do
meu doutorado foi com essas toxinas). Mas em óvulos de fêmeas de mamíferos, parece
que a CRISP tem a função de guiar o encontro entre aquela célula e o espermatozoide.
Dessa forma, CRISPs teriam uma função importantíssima na fecundação e concepção de
um novo mamífero. Sabemos que, em alguns casos de esterilidade masculina, os
espermatozoides não conseguem chegar ao óvulo, pois se perdem no meio do trajeto,
então será que não poderíamos utilizar as CRISPs para detectar tal problema de maneira
mais exata?
Sendo como medicamentos ou ferramentas, as toxinas animais podem ser fonte
de inovação e de maior entendimento dos processos internos do nosso corpo. Dessa
forma, conservar as espécies de serpentes, anfíbios e todo tipo de animal peçonhento e
venenoso é conservar um repertório desconcertante de possibilidades para o avanço
científico e tecnológico. Isso se torna ainda mais indispensável em um dos países mais
biodiversos do mundo. Queimada, desmatamento e caça indiscriminada pode enterrar
muita possibilidade de desenvolvimento e nos deixar sempre em um patamar de
consumidor e não produtor de tecnologia.
Gostou do texto? Compartilhe, deixe o seu comentário ou sugestões nas minhas
redes sociais. Se inscreva no meu canal do youtube para mais informações sobre biologia.

Saiba mais:
https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/07/23/caso-naja-amigo-deestudante-picado-divide-cela-com-mais-10-detentos-em-presidio-do-df.ghtml
https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/07/17/naja-no-df-servidor-doibama-e-afastado-por-suspeita-de-envolvimento-com-caso.ghtml
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/26/caso-da-naja-justicaprorroga-prisao-de-suspeito-de-trafico-de-animais.htm
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/23/justica-decide-afastarservidora-do-ibama-envolvida-em-caso-da-naja.htm
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/17/picado-por-najaestudante-apresenta-atestado-e-so-deve-depor-em-agosto.htm

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